Duas cidades
Este
é o pior dos tempos e este é o melhor dos tempos. No Portugal à beira
de 2013, transido de pavor e desalento perante o que aí vem, a abertura
de História de Duas Cidades, de Dickens (ao qual vale pena a pena voltar
para recordar - ou aprender - o que é uma sociedade, a da Inglaterra do
século XIX, pré-Estado social), ecoa as duas perspetivas sobre o que
está a acontecer. De um lado os que sabem que os aumentos de impostos e
os cortes na despesa social vão pôr toda a sua vida em causa, de outro
os que, sem sequer disfarçarem, esfregam as mãos perante o que veem como
um ajuste de contas com o passado pelo qual, percebemos agora, tanto
ansiavam
Um ano e três meses após a posse deste Governo estamos
perante a sua, digamos, verdade nua: a determinação de desmantelar o
conjunto de políticas que constituem o cerne da construção estatal e
social da democracia portuguesa. Há até quem creia que a aparatosa
incompetência do ministro das Finanças, a sua incapacidade de acertar
uma única previsão ou cumprir uma única meta redobrando a seguir a dose
da mesma receita falhada é, só pode ser, parte de um plano diabólico
para nos deixar a todos tão de joelhos com sucessivos aumentos de
impostos que o corte das funções sociais do Estado nos surja como "única
saída". É uma hipótese interessante para explicar tanta arrogante
azelhice, mas o certo é que para a decisão que temos de tomar pouco
importa que Gaspar e Passos sejam alucinados incapazes de perceber que a
receita não funciona ou estejam a aplicá-la precisamente porque conduz o
País para a ruína sobre a qual planeiam reconstrui-lo novinho em folha.
O contrato eleitoral entre os partidos da maioria e o País foi
quebrado. PSD e PP não submeteram a escrutínio o aumento incessante de
impostos e o desmantelamento do Estado social. Pelo contrário: sabendo
que isso implicava um resgate, Passos e Portas rejeitaram o PEC IV por
"não aceitarem" subir mais impostos e (não esquecer esta parte) cortar
mais nos apoios sociais. Não sabiam, Passos e Portas, que a esmagadora
maioria dos gastos do Estado, juros da dívida à parte, são despesas
sociais e salários com elas relacionados? Devem demitir-se por manifesta
e inaceitável impreparação. Sabiam? Agiram de má-fé. Mentiram.
Todos
os políticos mentem e prometem o impossível - diz o coro do costume.
Bom, nesse caso esta é uma belíssima ocasião de nós, o povo, tornarmos
claro que mentiras e promessas vãs não são aceitáveis. E em que cidade
queremos viver. A de Dickens, onde se trabalha por meio pão, a escola é
para quem pode pagá-la, os pobres doentes morrem na rua e os "vadios"
vão para os trabalhos forçados, ou a que construímos - construímos, sim -
em 38 anos de democracia. Só por isso, por nos fazer presente que o que
temos não caiu do céu, não esteve cá sempre e pode perder-se se nada
fizermos, este pior dos tempos pode ser também o melhor.
por Fernanda Câncio
*
Aucun commentaire:
Enregistrer un commentaire